ARTIGOS PUBLICADOS NO JORNAL DE SINTRA
~ ANO 2020 ~
A Estação de Sintra e...
(1ª Parte)
A Estação de Sintra e... (1ª Parte)
por Miguel Boim - Jornal de Sintra, edição de 24 de Janeiro de 2020
O elixir da vida é para nós hoje algo garantido. Basta-nos chegar junto de uma torneira, abri-la, e temo-lo a correr à nossa frente. É algo garantido, como disse. Mas tal como as pessoas no passado não tinham os hábitos de higiene que nós hoje em dia temos, também não tinham o acesso a água como nós hoje temos. Nem me refiro apenas a não terem água dentro de casa; para a alcançarem – a maioria da população, claro – tinham de alcançar um ribeiro, um regato, um poço, uma fonte, uma bica.
E se já algum dia tomou conhecimento de como o Paço Real de Sintra (actual “Palácio da Vila”) era no passado, mais deslumbrado certamente ficará ao imaginá-lo tendo várias fontes correndo água, tornando-o assim – no passado – num esplendor de frescura que fazia jorrar abundantemente o elixir da vida.
Existem inúmeras outras coisas as quais por estarem tão ao nosso alcance nos nossos dias, fazem com que a nossa percepção encerre o passado na sua distância, sem que consigamos imaginar o que os seres humanos sentiam no passado e, em especial, aquilo que sentiam quando tinham acesso a algo difícil de se obter, alcançar, chegar.
Chegar hoje a Sintra é facílimo, embora lhe possa parecer difícil segundo aquilo que são os padrões dos nossos dias. A estrada Lisboa-Sintra era uma estrada austera, desértica, com moinhos onde hoje vemos as urbanizações na Venteira, Monte Abraão, Rio de Mouro. Mesmo assim já representou um grande avanço quando no século XIX apareceu o omnibus que saía da Rua do Ouro, na Baixa, em direcção a Sintra. O omnibus era uma carruagem – das puxadas por cavalos, entenda-se – como aquelas que melhor ficam associadas à palavra “diligência”; o serviço já antes existia, mas não com o conceito com que então surgiu. O próprio termo omnibus é um termo de latim que significa “para todos”, e é também desse que vem o BUS, utilizado para transportes públicos desde o Norte da Europa até ter chegado a Portugal nos nossos anos 90.
A Rainha D. Amélia, tendo a seu lado o Rei da Saxónia, e em frente (e de costas para nós) o General von Altrock. 11 de Março de 1907. Arquivo Pessoal do Autor
Na década de 1870 surgiram as primeiras locomotivas para tracção de carruagens ou, melhor dizendo, para transporte de passageiros. Mas existe uma razão para ter escrito o que escrevi, da forma que escrevi. Essas locomotivas eram do sistema ferroviário Larmanjat. Partiam da estação conhecida como Portas do Rego (ainda hoje, entre a Praça de Espanha e Entrecampos encontramos o Túnel do Rego, tendo sobre si as linhas do comboio), e antes de chegar a Sintra passava por Ranholas. O que eu ainda não lhe contei foi que este sistema ferroviário, estas locomotivas, circulavam sobre apenas um carril. Exactamente. Em vez de terem as rodas assentes em dois carris, estas locomotivas tinham uma roda central que se apoiava num carril também ele central. Algumas dessas locomotivas tinham além de uma roda central à frente, uma outra também central no seu eixo traseiro. E todas elas tinham duas rodas laterais, que ajudavam no equilíbrio do peso da locomotiva. Extremamente curioso.
Este sistema ferroviário não era o melhor. Ou para fazer jus à realidade: este sistema ferroviário estava cheio de problemas, principalmente nas curvas (os desequilíbrios) e também nas subidas – casos houve em que se teve de desatrelar uma carruagem para a ir buscar mais tarde. É no seguimento do falecimento deste sistema Larmanjat que no ano de 1887 surge, em pleno funcionamento, a Companhia Real dos Caminhos de Ferro Portugueses. Sim, agora já com locomotivas “normais”, dentro daquilo que consegue no passado imaginar. Existia uma dessas locomotivas que até tinha o nome de O Rápido, e que pode ver numa das imagens aqui presentes.
Gravura da Estação de comboios de Sintra no ano de 1888, um ano depois das locomotivas da Companhia Real terem entrado em funcionamento em direcção a Sintra. O edifício mais próximo da nossa perspectiva já não existe com a configuração que na imagem se vê. Arquivo Pessoal do Autor
Hoje em dia damos por garantido o comboio para Sintra. Faz-nos chegar a Sintra, assim como autocarros, táxis, e outras plataformas de transportes. E ter carro hoje, é já algo comum. Mas se nos reportarmos àqueles primeiros anos, o comboio poder chegar a Sintra, poder trazer as pessoas a Sintra de forma muito mais cómoda do que no omnibus (mesmo apesar das cinzas e faúlhas que as locomotivas lançavam no ar através da chaminé, e que por vezes acabavam por entrar nas janelas das carruagens), era algo avançadíssimo! Era uma grande novidade!
Outra coisa que as pessoas nos dias de hoje imaginam é essas primeiras locomotivas a fazerem o transporte do cidadão – dito – normal. No final do século XVIII aparece o termo tourist pela primeira vez. E nos inícios dos anos de 1800, o termo tourism. Ao longo desse século, do século XIX, Sintra viu-se povoada de turistas, tendo em muito contribuído para tal as Invasões Francesas – e subsequente governo britânico -, assim como as múltiplas edições de George Byron, entre tantas outras coisas. Nesses anos, os burriqueiros abordavam as pessoas para lhes oferecer burricadas à Pena, burricadas a Monserrate, burricadas ao Buraco do Fojo. Por vezes existiam discussões entre eles. Por vezes os burriqueiros mais tímidos, eram aqueles a quem os turistas se dirigiam para obter uma burricada (como no caso de Lady Jackson, se a memória não me falha). No fundo, as burricadas precederam os tours. Uma burricada era simplesmente o burriqueiro levar nos seus burros, uns quantos turistas, todos eles aperaltados.
Mas no fim do século XIX, as coisas já não eram tão rurais. Surgiu até a Volta do Duche. E Sintra começou a preparar-se para o século XX (sem imaginar como seriam os grandes avanços do início do século XXI). No final do século XIX já Sintra se encontrava ao dispor de muitos cidadãos portugueses. Chegando a Sintra de comboio, a Vila estava logo ali, à mão, à vista!
A locomotiva conhecida como “O Rápido”, a sair do túnel (existindo na época apenas um) do Monte Estefânia no ano de 1900. Arquivo Pessoal do Autor
É da primeira década dos anos de 1900 que temos iconografia que nos cria maior impacto, pois é capaz de surpreender algumas pessoas no conhecimento da sua própria rotina. O Rei, a Rainha, também vinham de comboio para Sintra. Os chefes de estado de outros países, a Rainha Alexandra de Inglaterra, o Presidente Loubet, de França, também vieram de comboio para Sintra.
Há, em especial, uma imagem de um momento que marca como as coisas evoluíram (e que nesta página podemos ver). Vemos a sombra da estação de comboios de Sintra à direita, vemos no chão, por baixo da caleche, os carris do eléctrico da Praia das Maçãs (que nessa época passava em frente à estação), vemos a Rainha D. Amélia na caleche, tendo ao seu lado o Rei da Saxónia Friedrich August III, e em frente (e de costas para nós) o General von Altrock. O Rei da Saxónia aponta para o Castelo dos Mouros, mas o grande contraste aqui vê-se no que está ao fundo. Por detrás da população, vê-se uma casa que anuncia: Vinhos Cervejas Bebidas TABACARIA BIJOU Queijadas Finas e [ilegível]. A “Tabacaria Bijou” ainda existe. Tem hoje o nome de Cyntia, o qual abriga aqueles que em dias de chuva chegam no comboio que desde 1887 funciona. Bom, e a mim também, pois é lá que depois de começar a trabalhar às quatro, posso – num recanto recolhido – escrever e almoçar logo às dez da manhã.
Do dia 11 de Março de 1907 – dia em que esta fotografia foi tirada – vemos como tudo mudou: os pormenores da casa em si, os espaços em redor ocupados agora por outras casas, os carris do eléctrico da Praia das Maçãs que desapareceram, a caleche com seus cavalos em sentido contrário ao qual circulam agora veículos eléctricos, as árvores que começam a tapar a vista para o Castelo, e as figuras da nossa História que muitas pessoas não esperariam ver sair da estação de comboios de Sintra.
Mas eu estou a falar-lhe de tudo isto porque o título contém não apenas “Estação de Sintra”, mas ainda um “e...” Esse “e...” fala de uma figura da nossa História, e ajudá-lo-á a perceber não apenas o ambiente de então nas chegadas de comboio a Sintra, mas também uma inesperada aventura por parte de quem então ainda tinha de apanhar um transporte para chegar a “casa”. E sim, “transporte”, depois de ter apanhado o comboio, e depois de ter chegado a Sintra. Mas o melhor é deixarmos isso para voltar a estar consigo na segunda parte.
por Miguel Boim, O Caminheiro de Sintra
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